sábado, 27 de fevereiro de 2016

Faces da vida

Antônimo nasceu cego, filho de lavadeira e agricultor, sua cegueira não tinha reversão. Vivia em  um lugarejo, Rancho do Paraíso, rodeado por irmãos e vizinhos, que embora não soubessem muito bem como agir, buscavam caminhos.
Naquela época não existia escola especializada pelas redondezas.  Há alguns quilômetros dali tinha uma escolinha, apenas uma professora para a turma mista.  Mas Antônimo ficava em casa.
O menino decifrava o mundo pelo tato, sons, cheiro e sentimentos que o rodeavam. Ouvir o canto dos pássaros, a água da bica, os animais pela casa,  e a voz macia da mãe o deixavam tranquilo. Às vezes o estranhamento acometia as pessoas ao redor, no entanto ele não percebia.
Embora tivesse muito pouco estudo, a mãe se preocupava com o futuro do filho. Reuniu a família e os convenceu a mudar para Santa Fé. Família pobre também almejava melhores condições de vida.
Antônimo já tinha 17 anos quando se mudaram. Em Santa Fé entrou pra escola especializada em Braille, descobriu um novo mundo. Apaixonou-se pelas palavras, aqueles pontinhos delicados nas pontas dos dedos, e pelos encantos que aprendia quando juntava muitas delas. Tocava violão e cantava músicas do Chico Buarque, cozinhava como ninguém e aprendeu a trabalhar com couro, fabricava chinelos, bolsas, enfeites. Abriu uma pequena oficina, em casa mesmo, e vendia bem seus produtos.  Aos 34 anos conheceu Suave, uma moça que também era cega. Ele amava seu cheiro e pele macia. Namoraram muito, casaram-se e tiveram três filhos que enxergavam.
A vida seguia seu curso, anos se passaram, Antônimo ganhou uma netinha. E numa manhã fresca de março ele viu a luz. Viu o quarto, os móveis, do seu lado viu Suave, dormia. Levantou-se da cama e viu a casa, viu a rua, viu a televisão, viu as pessoas, o gato, as árvores, a água, os livros, as cores, os carros, o celular, as faces, as faces, as faces...
-Antônimo agora enxerga! Antônimo agora vê! É um milagre! Vocês viram? Ele era cego de nascença. Vamos ver o homem que não via. Que esplêndido!
Ele observa o mundo, suas cores, suas faces, suas faces. Agora ele via Suave, via os filhos, a neta. Suave ficou triste.
A vida é bonita né Antônimo? A vida é bonita?
-É... a vida é bonita, a vida é bonita... tem muitas cores, tem muitas faces, tem muitas faces... Me desculpe. Eu preferia ser cego.

Flávia Frazão

Liberdade

  Livro Liberdade - Flávia Frazão